Mesmo fora do processo de recuperação judicial, as instituições financeiras com créditos garantidos por cessão fiduciária só poderão receber o que têm direito após a aprovação de plano pela assembleia-geral de credores. Este foi o entendimento do juiz Daniel Carnio Costa, da 1ª Vara de Recuperação Judicial e Falências de São Paulo, ao julgar uma ação envolvendo o Banco Itaú.
A cessão fiduciária (também conhecida como trava bancária) é uma prática bastante comum no mercado: a empresa, ao tomar crédito no banco, oferece como garantia títulos que têm a receber.
No caso analisado, a companhia apresentou recebíveis futuros de cartão de crédito. Se o pagamento deixasse de ser realizado no prazo contratado, o banco poderia se valer de tais recebíveis para liquidar a dívida.
Plano de Recuperação: saiba mais sobre a determinação
A questão está entre as mais polêmicas dos processos de recuperação. E, justamente, porque a cessão fiduciária, assim como a alienação fiduciária (procedimento semelhante, mas que em vez de recebíveis tem bens como garantia da dívida), não se sujeita aos efeitos dos planos de renegociação das dívidas das empresas em crise, que geralmente preveem descontos e parcelamentos mais longos.
A interpretação para deixar esses credores de fora dos processos é que nos dois casos – cessão e alienação fiduciária – existe a transferência de propriedade dos títulos e dos bens da devedora no momento em que o contrato é assinado. E o retorno da propriedade para a empresa só ocorre depois de a dívida ser quitada. Há divergências no Judiciário, no entanto, em relação ao que é considerado essencial para as atividades de uma empresa em crise.
Existe jurisprudência do STJ no sentido de que se tratar de um bem de capital essencial (máquina ou equipamento), credores garantidos por alienação fiduciária não têm permissão para retirá-lo da empresa por um período de 180 dias (o chamado prazo de blindagem, entre o deferimento do processo de recuperação e a aprovação do plano em assembleia-geral de credores).
Já com relação à cessão fiduciária, não há ainda entendimento pacificado. Existe decisão da 4ª Turma do STJ (REsp nº 1.263.500-ES) interpretando que, diferentemente da alienação fiduciária, os títulos dados em garantia já estariam em posse do credor.
Na segunda instância, há posicionamentos variados, segundo Guilherme Marcondes Machado, do escritório Marcondes Machado Advogados. No Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, afirma, a maioria das decisões é favorável às instituições financeiras, ou seja, permitindo a execução dos valores já no período de blindagem.
Em outros Estados, porém, há casos de liberação de até 30% do que seria retido pelo banco para o uso da empresa. Existem decisões nesse sentido na Justiça do Rio.
O juiz Daniel Carnio Costa, no processo que envolve o Banco Itaú (nº 1049020-41.2017. 8.26.0100), dá uma nova roupagem à discussão. Ele analisou o caso de acordo com o princípio da isonomia entre credores que ocupam a mesma posição.
Para o magistrado, não se mostra adequado o titular da cessão fiduciária usufruir da sua garantia sem qualquer restrição enquanto que o da alienação fiduciária não pode retirar da empresa e vender determinado equipamento para a realização do seu crédito.
“À luz do artigo 49, parágrafo 3º, da Lei nº 11.101/05, credores titulares da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis estão sujeitos ao mesmo regime jurídico, não sendo razoável que o intérprete os coloque em situações diametralmente opostas em relação ao exercício do direito de propriedade sobre a coisa objeto da garantia.”
Carnio Costa considera ainda que, embora o faturamento não seja considerado um bem de capital a ser retirado do estabelecimento, trata-se de um ativo essencial para que a empresa consiga sobreviver até o momento em que renegocia as suas dívidas com os demais credores.
Por isso, na decisão, o juiz não limita o impedimento da retirada de faturamento da empresa pelo período de 180 dias. A determinação vale até a aprovação do plano de recuperação pela assembleia-geral de credores. De acordo com ele, já há definição do STJ de que o prazo de 180 dias, que é o previsto em lei, pode ser prorrogado judicialmente se o atraso na realização da assembleia não for atribuído à conduta da devedora.
A melhor interpretação que se deve dar aos institutos da recuperação judicial, acrescenta Carnio Costa, é a que permite aos juízes “atingir de maneira mais eficaz os resultados de interesse social” – como geração de emprego, circulação de riquezas e recolhimento de tributos – e não “os parciais de credores e devedores”.
A questão divide advogados. Bruno Poppa, do escritório Tepedino, Migliori, Berezowski e Poppa, que tem instituições financeiras entre os seus clientes, por exemplo, entente que a lei que regula os processos de recuperação e falências é clara ao tratar especificamente de bem de capital para os casos de essencialidade.
“Então não é o caso de dinheiro”, diz. “Sabemos que em tempos de crise essas questões acabam voltando e alertamos os clientes para isso. Mas é preciso destacar que essa é uma discussão superada no tribunal do Estado”, acrescenta.
Para ele, se os desembargadores mudarem de entendimento – concordando com Carnio Costa – será grande o impacto para o mercado. “Até porque apesar de a lei falar em 180 dias improrrogáveis, o que vemos são planos sendo aprovados em dois anos ou mais. Para os credores isso se tornaria bastante complicado.”
Já Marcondes Machado, que advoga para empresas em recuperação, entende que ao proferir decisões liberando os valores da cessão fiduciária para o uso das companhias em crise, o Judiciário permite, na verdade, que elas continuem em operação e que, de fato, consigam se recuperar.
O advogado lembra que quando a lei estava sendo elaborada, o argumento usado pelos bancos para que os créditos garantidos fiduciariamente fossem deixados de fora dos processos era que teriam mais segurança para receber e, assim, baixariam a taxa de juros para empréstimos e financiamentos. “Só que isso não aconteceu. Então o empresário fica desprotegido nos dois lados: tanto pelas altas taxas de juros como também no caso de uma recuperação judicial.”
Procurado pelo Valor, o Banco Itaú preferiu não se manifestar.
Fonte: Valor Econômico